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03 de Setembro de 2020
Não é de hoje que sabemos da urgência e necessidade de falarmos sobre saúde mental. No entanto, o novo contexto mundial deixou ainda mais evidente tal importância e complexidade. Vivemos um momento de convergência de crises (sanitária, política, social, econômica, relacional, planetária) que geram impactos significativos em nossa forma de ser e estar no mundo.
A pandemia do novo coronavírus trouxe a necessidade do isolamento social como elemento determinante de nossas interações nos últimos meses, modificando nossa rotina e exigindo novas formas de organização, interna e externa.
Mudar não é fácil, exige que entremos em contato com o sofrimento e aceitemos nossa responsabilidade pela mudança que pretendemos. Entrar em contato com “o novo” faz com que acionemos nossos mecanismos de defesa para lidar com a angústia do inesperado. Essas defesas são constituídas de acordo com as experiências ao longo da vida e o contexto no qual estamos inseridos.
Devido a isso, percebemos reações individuais tão diferentes, apesar das orientações padrões em relação à pandemia. Por exemplo, enquanto algumas pessoas aceitam e agem de forma cautelosa e preventiva, outros ainda negam a gravidade e importância dos cuidados. Nossas reações variam de acordo com a forma como entendemos, nos defendemos e lidamos com o novo.
E como mudou! Os impactos da pandemia já podem ser sentidos e avaliados nos âmbitos:
Individual: medo, culpa, fadiga mental, alterações na rotina, aumento da ansiedade e transtornos relacionados, luto, entre outros.
Relacional: isolamento, dificuldade de comunicação e interação, maior tempo de convivência intrafamiliar e as problemáticas que surgem deste contato.
Social: desigualdades acentuadas, aumento de casos de violências diversas, opressões, entre outros.
Não podemos falar em saúde mental desarticulando as dimensões sociais e relacionais. Elas são interdependentes e se afetam mutuamente. Quanto maior o impacto coletivo maior será o sofrimento individual.
Chamamos de sintoma o que a pessoa consegue expressar acerca do sofrimento. Por exemplo, quando estamos com uma infecção, um dos sintomas pode ser a febre. Emocionalmente acontece da mesma forma, apresentamos o medo, a ansiedade, a insegurança, por exemplo, como sintomas de um sofrimento mais profundo. Esses sintomas funcionam como alertas, chamando nossa atenção para algo que precisa ser visto e cuidado internamente.
Mas muitas vezes ficamos tão fixados no sintoma que deixamos de olhar para a causa, para o sofrimento, que é mais profundo e coletivo. Você já parou para pensar que, apesar de cada um reagir de uma forma à pandemia, há um consenso sobre a insatisfação com a maneira como estamos funcionando e lidando com a vida, existe um desejo de mudança, de busca por maior qualidade de vida e isso é anterior ao coronavírus.
A pandemia nos obrigou a desacelerar. Antes dela já enfrentávamos as consequências, principalmente emocionais, de uma sociedade pautada no consumo, no trabalho, na pressa, na falta de tempo. Faltava tanto que hoje não sabemos o que fazer com o que sobra. Nos acostumamos a sermos controlados, a tal ponto de não sabermos como nos organizar sozinhos. Vivemos a ilusão de termos o controle e, diante de qualquer situação que nos mostre o contrário, já não sabemos quem somos ou como agir.
A reação mais natural é querermos voltar para o que tínhamos e estávamos acostumados, o conforto daquilo que conhecemos, e que não nos exige tanto. Por isso questionamentos como: Quando isso vai acabar? Quando voltaremos ao “normal”? São tão frequentes.
Proponho que aprofundemos um pouco estes questionamentos, observando nossa necessidade de controle e refletindo se realmente consideramos o formato de vida anterior à pandemia “normal” ou há possibilidade de mudanças internas e coletivas para construirmos uma forma mais saudável de viver e nos relacionarmos.
Isso não significa dizer que temos que pensar no lado bom, em uma pandemia não há lado bom. O convite é para encararmos o sofrimento, perceber o que ele evidenciou e, a partir de então, assumirmos responsabilidade pelas mudanças que desejamos ver em nós mesmos e no mundo.
Na psicologia, entendemos as crises como elementos importantes no processo de constituição do ser, mobilizando recursos e sinalizando pontos de transformação que, quando trabalhados, nos permitem uma maior aproximação de nós mesmos e, consequentemente, dos outros.
E se, no lugar da angústia de esperar o retorno da normalidade, começássemos a nos questionar: Quais necessidades, individuais e coletivas, essa pandemia nos mostrou? Algumas ficaram mais evidentes, outras, para percebermos, precisamos questionar e sair de nossa posição, muitas vezes privilegiada, para entrarmos em contato com outras realidades.
Solidão x Solitude
Algo que ficou muito nítido nesses últimos meses foi a dificuldade das pessoas de estarem sozinhas. Vivemos um tempo de muitas interações e facilidade de contato, porém, com pouca profundidade e vínculos frágeis. O isolamento social fez com que muitos sentissem o vazio e a solidão de estarem consigo mesmos. Chamamos de solitude a conexão com nosso mundo interno, tão importante e necessária. Precisamos aprender a reservar um tempo para nós mesmos, para nos conhecermos, gostarmos da nossa companhia, a tal ponto que estar com o outro seja uma escolha, não uma obrigatoriedade.
Autocuidado
Ainda no âmbito individual, com a pandemia, sentimos mais profundamente a necessidade de nos dedicarmos a nós mesmos, priorizar nossa saúde e bem-estar geral. Esse autocuidado passa por uma alimentação de qualidade, sono reparador, práticas de exercícios físicos e forma de relaxamento, manutenção dos vínculos de suporte, organização de rotina, contato com a natureza (dentro do possível), atividades prazerosas, descanso. Se cuidar é principalmente, olhar suas necessidades e não as pressões externas, é buscar o que você precisa em determinado momento, sem cobranças por produtividade ou comparações com outras realidades.
Novas formas de comunicação e troca de afeto
No âmbito relacional, a pandemia mudou também nossa forma de demonstrar e receber afeto. Sem podermos nos encontrar, nos abraçar, somos convidados a buscar outras estratégias para nos sentirmos acolhidos e compartilhar também. Os recursos virtuais auxiliam muito, fornecendo novas oportunidades de estarmos em contato.
Consciência
No que diz respeito ao coletivo, talvez o pedido mais profundo dessa pandemia foi para que ampliássemos nossa consciência acerca de nós mesmos e do mundo. Entender que nossas ações interferem no todo e que as estruturas existentes, que determinam nossa sociedade, também nos afetam e precisam ser repensadas. Somos parte de algo maior, os cuidados que temos conosco são importantes para os que nos rodeiam e para o mundo. Ao mesmo tempo, não podemos reduzir o mundo à nossas vivências, temos uma realidade desigual e só conseguimos mudar algo a partir dessa consciência.
Coletividade/solidariedade
Com a consciência ampliada podemos pensar e agir de forma mais coletiva e solidária. Reconhecendo nossos privilégios e participação social nos implicamos de maneira mais responsável. Os impactos sociais e econômicos da pandemia já estão sendo sentidos e nos afetarão como sociedade cobrando nossa participação, na luta por garantia de direitos, equidade e mudanças necessárias. Buscar informação, leituras e movimentos de apoio social nos ajuda a iniciar esse processo.
Quando acessamos e reconhecemos nossas necessidades podemos agir para alcançar o que desejamos, seja individualmente ou no coletivo. Acolher e refletir sobre o sofrimento é importante para encontrar saídas. Saúde mental é também compreendermos nossas fragilidades e potências para lidar com situações críticas e buscar apoio.
Artigo escrito por: Natália Antunes Ramos Schubert, Psicóloga do CEJAM.
Fonte: Imprensa, Criação & Marketing
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